quinta-feira, 8 de setembro de 2011

REFLETINDO O NOVO ESPAÇO URBANO.

Desafios da questão urbana no Brasil 

A cidade brasileira contemporânea resulta da combinação de dois mecanismos complementares: a livre mercantilização e a perversa política de tolerância com todas as formas de apropriação do solo urbano.

A livre mercantilização permitiu a aliança entre as forças que comandaram o projeto de desenvolvimento capitalista, os interesses das firmas internacionais e as frações locais da burguesia mercantil inseridas no complexo conformado pela tríade produção imobiliária – obras públicas – concessão de serviços públicos. O Brasil urbano foi desenhado pela ação dessa coalisão mercantilizadora da cidade, tendo o Estado como condottiere, seja protegendo os interesses da acumulação urbana da concorrência de outros circuitos, seja realizando encomendas de construção de vultosas obras urbanas ou pela omissão em seu papel de planejador do crescimento urbano. Omissão que, além de servir à mercantilização da cidade, teve papel fundamental na transformação do território em uma espécie de fronteira interna da expansão capitalista, aberta à ocupação livre da massa expropriada do campo.

Entre 1950 e 1970, quase 39 milhões de pessoas migraram do mundo rural e se transformaram em trabalhadores urbanos vulneráveis em razão do processo
incompleto do assalariamento e da precária propriedade da moradia autoconstruída. Nesse contexto, a informalidade do trabalho e da produção da casa constituíram-se em poderoso instrumento de amortecimento dos conflitos sociais, próprios do modelo de expansão capitalista baseado na manutenção de elevada concentração da riqueza e da renda.

Não é por outra razão que podemos falar de uma questão urbana no Brasil. A dinâmica de formação, crescimento e transformação das nossas cidades sintetiza duas questões nacionais cruciais: a questão democrática e a questão distributiva.

A questão democrática se traduz na capacidade da cidadania ativa de substituir a coalizão de interesses que sustentou o processo de acumulação urbana recente, por um regime político republicano capaz de assegurar a todos o direito à cidade, isto é, o direito à participação nos processos deliberativos que dizem respeito à cidade, à coletividade urbana e seus destinos.

A questão distributiva refere-se à quebra do controle excludente do acesso à riqueza, à renda e às oportunidades geradas no (e pelo) uso e ocupação do solo urbano, assegurando a todos o direito à cidadecomo riqueza social em contraposição a sua mercantilização.

São essas as bandeiras que foram traduzidas pelo movimento social nas propostas da reforma urbana e que passaram a integrar o arcabouço do Estatuto da Cidade.

Os conhecidos e assustadores problemas das nossas cidades precisam ser entendidos como partes fundamentais da nossa questão nacional. Os mecanismos que submetem a questão nacional à lógica do crescimento mercantil são aqueles apontados por Celso Furtado como os responsáveis pela manutenção do Brasil como uma nação inacabada. Nesse sentido, poderíamos também dizer que temos cidades inacabadas, pois estas são incapazes de mediar os conflitos e integrar, mesmo que parcialmente, as distintas classes e grupos sociais.

Os novos desafios

Vivemos hoje um momento crucial de transformações que coloca a necessidade de atualizar a questão urbana brasileira e a sua tradução em novos modelos de planejamento e gestão das nossas cidades.

A acumulação urbana está sendo reconfigurada no padrão clássico da modernização conservadora que preside desde sempre a nossa inclusão na economia-mundo. As nossas cidades estão sendo incluídas nos circuitos mundiais que buscam novas fronteiras de expansão da acumulação, diante da permanente crise do capitalismo financeirizado. E o Brasil aparece com atrativas fronteiras urbanas exatamente em razão do ciclo de prosperidade e estabilidade que atravessamos, combinadas com a existência de ativos urbanos passíveis de serem espoliados e integrados aos circuitos de valorização financeira internacionais.

Abre-se um novo ciclo de mercantilização que combina as conhecidas práticas de acumulação urbana baseada na ação do capital mercantil local com as novas práticas empreendidas por uma nova coalização de interesses urbanos na direção da sua transformação em commodity. A expansão da visão do Brasil como mercado, que se difunde mundialmente, conspira contra a visão do Brasil como sociedade urbana, democrática, justa e sustentável.

A inserção da acumulação urbana nos circuitos financeiros globalizados demanda novos padrões de gestão do território. Contudo, a análise do que vem ocorrendo em muitas das nossas cidades indica a manutenção parcial da lógica da modernização-conservadora, resultando em uma governança empreendedorista com traços muito particulares em relação a outros países que vêm vivenciando processos similares.

Essa governança pode ser mais bem compreendida a partir da identificação esquemática de quatro lógicas políticas particularistas que coexistem na organização e no funcionamento da administração urbana das cidades. É preciso também levar em conta a fragilidade das instituições de gestão democrática, bloqueando, como consequência, a adoção dos necessários instrumentos de planejamento e gestão pública decorrentes da afirmação do direito à cidade e da lógica do universalismo de procedimentos.

Essas lógicas particularistas esquartejam a máquina pública em vários centros de decisão que funcionam segundo os interesses que comandam cada uma delas. São elas:

a)o clientelismo urbanoque trouxe para as modernas cidades brasileiras o padrão rural de privatização do poder local, tão bem transcrito por Vitor Nunes Leal na expressão coronelismo, enxada e voto, mas que nas condições urbanas transformou-se em assistencialismo, carência e voto. Trata-se da lógica que está na base da representação política no Poder Legislativo Municipal, mas que precisa controlar parte da máquina administrativa para fazer a mediação do acesso pela população ao poder público.

O clientelismo urbano é alimentado por práticas perversas de acobertar uma série de ilegalidades urbanas que atendem a interesses dos circuitos da economia subterrânea das nossas cidades (comércio ambulante, vans, etc.) e a necessidades de acessibilidade da população às condições urbanas de vida, dando nascimento às nossas favelas e às entidades filantrópicas que, muitas vezes travestidas de ONGs, usam recursos públicos para prestar, privada e seletivamente, serviços coletivos que deveriam ser providos pela Prefeitura. Atualmente, esta lógica vem se reconfigurando pela presença, nas Câmaras de Vereadores, de representantes do crime organizado, como é o caso do fenômeno das milícias no Rio de Janeiro.

b)o patrimonialismo urbano,fundado na coalizão mercantil da acumulação urbana, representados pelas empreiteiras de obras públicas, concessionárias dos serviços públicos, entre elas o poderoso setor de transportes coletivos, e os do mercado imobiliário;

c)o corporativismo urbano,traduzido na maneira particular como os segmentos organizados da sociedade civil atuam nas arenas de participação abertas pela Constituição de 1988. A promessa desses canais de participação era a constituição de um padrão republicano de gestão da cidade que, se implantado, criaria condições para o surgimento de uma gestão urbana fundada no universalismo de procedimento.

Nos municípios onde as eleições levaram ao comando das Prefeituras coalizões de forças comprometidas com a constituição de uma verdadeira esfera pública local, verifica-se, em muitos casos, a reversão desse projeto. Isso se deve a dois fatores: o baixo índice de associativismo vigente na sociedade – cabe registrar que, segundo dados do IBGE, apenas 27% da população adulta integra as formas de organização cívica como sindicato, associações profissionais, partidos, entidades de bairro, etc. – e, de outro lado, a fragmentação e consequente enfraquecimento dos movimentos sociais nas cidades enquanto sujeito coletivo articulado em torno de um projeto.

Esses dois fatos vêm bloqueando a constituição de uma aliança entre o escasso mundo civicamente organizado e o vasto segmento da população urbana que se mobiliza politicamente apenas de maneira pontual e temporária.

O resultado é que, muitas vezes, as experiências participativas resultam no atendimento dos interesses dos segmentos organizados, sem forçar a adoção de um universalismo de procedimentos, pressuposto da constituição de uma esfera democrática e de uma burocracia planejadora.

d)por fim, o empresariamento urbano, uma lógica emergente impulsionada pelo surgimento do complexo circuito internacional de acumulação e dos agentes econômicos e políticas organizados em torno da transformação das cidades em projetos especulativos fundados na parceria público-privado, conforme descreveu Davida Harvey.

Integra esse circuito uma miríade de interesses, protagonizados pelas empresas de consultoria em projetos, pesquisas, arquitetura, de produção e consumo dos serviços turísticos, empresas bancárias e financeiras especializadas no crédito imobiliário, empresas de promoção de eventos, entre outras. Tais interesses encontram parceiros nas novas elites locais portadoras das ideologias liberais e que buscam recursos e fundamentos de legitimidade para justificar a competição urbana. Entre outros recursos, essas novas elites utilizam técnicas do marketing urbano, traduzindo em obras exemplares a “nova cidade”, o que é facilitado pela fragilidade dos partidos políticos.

A política urbana passa a orientar-se pela realização de médios e megaeventos e pela realização de investimentos de renovação de áreas urbanas degradadas, prioridades que permitem legitimar a ação das elites e construir as alianças com os interesses do complexo internacional empreendedorista. Na maioria dos casos, essa orientação se materializa na constituição de bolsões de gerência técnica, diretamente vinculados aos chefes do executivo e compostos por pessoas recrutadas fora do setor público. A lógica do empresariamento urbano, que se pretende mais eficiente, implica no abandono e mesmo desvalorização da organização burocrática.

Essa lógica do empresariamento urbano lidera e hegemoniza a nova coalizão urbana integrada também pelas lógicas do clientelismo, do patrimonialismo e do corporativismo. O resultado é um padrão de governança urbana bastante peculiar, onde o planejamento, a regulação e a rotina das ações são substituídos por um padrão de intervenção que se funda na exceção, com os órgãos da administração pública e canais institucionais de participação crescentemente fragilizados.

A cidade brasileira contemporânea resulta da combinação de dois mecanismos complementares: a livre mercantilização e a perversa política de tolerância com todas as formas de apropriação do solo urbano.

A livre mercantilização permitiu a aliança entre as forças que comandaram o projeto de desenvolvimento capitalista, os interesses das firmas internacionais e as frações locais da burguesia mercantil inseridas no complexo conformado pela tríade produção imobiliária – obras públicas – concessão de serviços públicos. O Brasil urbano foi desenhado pela ação dessa coalisão mercantilizadora da cidade, tendo o Estado como condottiere, seja protegendo os interesses da acumulação urbana da concorrência de outros circuitos, seja realizando encomendas de construção de vultosas obras urbanas ou pela omissão em seu papel de planejador do crescimento urbano. Omissão que, além de servir à mercantilização da cidade, teve papel fundamental na transformação do território em uma espécie de fronteira interna da expansão capitalista, aberta à ocupação livre da massa expropriada do campo.

Entre 1950 e 1970, quase 39 milhões de pessoas migraram do mundo rural e se transformaram em trabalhadores urbanos vulneráveis em razão do processo incompleto do assalariamento e da precária propriedade da moradia autoconstruída. Nesse contexto, a informalidade do trabalho e da produção da casa constituíram-se em poderoso instrumento de amortecimento dos conflitos sociais, próprios do modelo de expansão capitalista baseado na manutenção de elevada concentração da riqueza e da renda.

Não é por outra razão que podemos falar de uma questão urbana no Brasil. A dinâmica de formação, crescimento e transformação das nossas cidades sintetiza duas questões nacionais cruciais: a questão democrática e a questão distributiva.

A questão democrática se traduz na capacidade da cidadania ativa de substituir a coalizão de interesses que sustentou o processo de acumulação urbana recente, por um regime político republicano capaz de assegurar a todos o direito à cidade, isto é, o direito à participação nos processos deliberativos que dizem respeito à cidade, à coletividade urbana e seus destinos.

A questão distributiva refere-se à quebra do controle excludente do acesso à riqueza, à renda e às oportunidades geradas no (e pelo) uso e ocupação do solo urbano, assegurando a todos o direito à cidadecomo riqueza social em contraposição a sua mercantilização.

São essas as bandeiras que foram traduzidas pelo movimento social nas propostas da reforma urbana e que passaram a integrar o arcabouço do Estatuto da Cidade.

Os conhecidos e assustadores problemas das nossas cidades precisam ser entendidos como partes fundamentais da nossa questão nacional. Os mecanismos que submetem a questão nacional à lógica do crescimento mercantil são aqueles apontados por Celso Furtado como os responsáveis pela manutenção do Brasil como uma nação inacabada. Nesse sentido, poderíamos também dizer que temos cidades inacabadas, pois estas são incapazes de mediar os conflitos e integrar, mesmo que parcialmente, as distintas classes e grupos sociais.

A análise dos planos diretores elaborados após o Estatuto das Cidades, realizada pela Rede de Avaliação dos Planos Diretores Participativos, parece confirmar essa hipótese. De uma forma geral, a pesquisa demonstra a generalizada incorporação dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade pelos municípios, o que permite reconhecer que a agenda e a proposta da reforma urbana foram efetivamente disseminadas na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, também se percebe que foram poucos os planos que avançaram na aplicação territorial de diretrizes e instrumentos que afirmam a função social da propriedade, o que evidencia, em diversos casos, o descolamento dos propósitos do plano com o território municipal e a fragilidade de estratégias de desenvolvimento urbano pretendidas nesses Planos Diretores.

Em linhas gerais, percebe-se que os Planos Diretores estabelecem definições, diretrizes e objetivos relacionados à política de habitação, à política de saneamento ambiental, à política de mobilidade e à gestão democrática, porém sem incorporar os elementos necessários para tornar realidade o planejado.

Uma utopia em construção

Em síntese, apesar dos avanços no discurso relativo ao direito à cidade, este não se traduz na definição de metas e estratégias efetivas para o enfrentamento da problemática urbana das cidades pesquisadas.

Para enfrentar esse novo contexto de aprofundamento da mercantilização da cidade contemporânea cremos que é necessário, antes de tudo, atualizar o ideário do direito à cidade como parte de uma nova utopia dialética em construção, emancipatória e pós-capitalista, materializada em um novo projeto de cidades e de organização da vida social, que precisa se expressar também na atualização do programa e da agenda da reforma urbana e na promoção de práticas e políticas socioterritoriais de afirmação do direito à cidade.

A atualização da agenda da reforma urbana, expressando o ideário do direito à cidade, deve propor mecanismos de um novo tipo de coesão social baseado na negação da segregação social, na promoção da função social da cidade e da propriedade, na gestão democrática, e na difusão de uma nova cultura social, territorial e ambiental que promova padrões de sociabilidade com base na solidariedade, na construção de identidades e na representação de interesses coletivos.

Destacamos a importância da criação de esferas públicas efetivamente democráticas de gestão das políticas públicas que ultrapassem os limites da democracia representativa liberal e possibilitem a visibilização, interação, conflito e negociação entre os diferentes agentes sociais e entre estes e o poder público, em que a tomada de decisões seja resultado desse conflito e negociação.

O movimento da reforma urbana está desafiado a intervir programaticamente na cidade na forma de uma rebeldia criativa, buscando promover práticas educativas, políticas públicas e novas linguagens culturais geradoras da desmercantilização da cidade e da promoção do direito à cidade e rompendo, desta forma, com a hegemonia do neoliberalismo empreendedorista.

Luiz César Queiroz Ribeiro é professor titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisador do IA do CNPq e coordenador do Observatório das Metrópoles /Instituto do Mmilênio-CNPq. (www.observatoriodasmetropoles.net)

(*) Orlando Alves Santos Junior é Professor adjunto do IPPUR/UFRJ e membro da coordenação do INCT Observatório das Metrópoles.

*Texto originalmente publicado na versão impressa e eletrônica do Le Monde Diplomatique Brasi, ANO 4, Número 45, Abril de 2011

(Observatório das Metrópoles)

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